Sobre
Nelson, o alquimista do inferno, de Renata Soares JUNQUEIRA, (São Paulo:
Todas as musas, 2022, 125 p.).
Não poucos leitores ou espectadores
(de teatro, de cinema e de exibições televisivas) manifestam desconforto diante
da poética de Nelson Rodrigues. Entretanto, o que para alguns parece
inabilidade dele para trazer à luz narrativas e cenas atraentes, agradáveis,
reconfortantes é, na verdade, um talento extremo para obter exatamente o efeito
vizinho da náusea que sua literatura e sua dramaturgia carregam. Por isso,
Renata Soares Junqueira não poderia ter escolhido melhor título para seu último
livro. Com efeito, Nelson Rodrigues faz de seus textos uma ponte – ou melhor:
escuro túnel – para levar o leitor ou expectador da poltrona confortável da
sala diretamente para o reino de Satã, onde ele pode “apreciar” aspectos da
vida – mormente a familiar – que em geral se prefere deixar atrás dos biombos
da alienação ou da mistificação. E é como alquimista que Nelson mistura o que
encontra pela frente para tentar a metamorfose desejada, não de ossos em ouro,
como o Flamel de Lima Barreto, mas, pelo contrário, a transformação de pretenso
diamante (a fidelidade conjugal, por exemplo) em cinzas (o puro creme da
promiscuidade ou putaria).
Em que consiste a alquimia de
Nelson? Renata argumenta, com sólidos fundamentos, que “a dramaturgia de Nelson
Rodrigues não será mesmo nem uma coisa nem outra [tragédia, comédia,
tragicomédia, drama, melodrama], mas uma habilíssima montagem de elementos
vários, redundando (...) num gênero de feição bem popular: a farsa
(grifo da autora) ...”. Alquimia de gêneros, de estilos, de abordagens, de
modos de ver o mundo, as pessoas e as coisas, buscando seu lado sombrio, para
evitar o engano ou, pelo menos, saber lidar com ele. Bravo!
Por que é infernal esta alquimia?
Porque vai na direção de “mostrar as tripas” daquilo que é um cadáver aberto,
de fato, enquanto é apresentado, ilusoriamente, como belo e bom corpo vivo e
atuante: a família burguesa, desde sua angelical definição por Diderot.
Nesse afã maldito, a quem Nelson
Rodrigues “se junta”, alinhando-se ou até sofrendo influência direta, na
dramaturgia brasileira? É bem interessante a resposta de Renata Junqueira para
esta questão, buscando comparações com as obras de Qorpo Santo, Oswald de
Andrade e Lúcio Cardoso, na primeira parte do livro (I-Teatro), que é praticamente
uma aula rápida e clara, mas profundamente esclarecedora (Renata é uma
habilíssima professora, além de profícua pesquisadora). Sua leitura enriquece o
cabedal dos iniciados, mas também se constitui numa introdução acessível e ao
mesmo tempo estruturante para o leigo.
Trazido para o cinema, o teatro de
Nelson Rodrigues sofre mutações: os alquimistas das cenas em celuloide lançam
diferentes olhares sobre o inferno que chega às suas mãos em forma de texto
teatral, reservando-se o direito de lidar com as personagens de modo a redimi-las
ou mantê-las em condenação; de modo a manter o espectador sob as garras de Satã
ou a reservar-lhe alguma possibilidade de fuga ou alívio. Renata analisa três
experimentos cinematográficos dignos de atenção (Parte II-Cinema): o de Leon
Hirszman (A falecida), o de Nelson Pereira dos Santos (Boca de Ouro)
e o de Arnaldo Jabor (Toda nudez será castigada). A
professora-pesquisadora, habituada aos procedimentos que evitam o olhar
monocromático e a mirada que foge à natureza multifacetada da realidade,
oferece, com esta parte de sua obra, outra rica aula sobre arte cênica e sétima
arte; não só permite ao leitor vislumbrar as diferenças entre as duas (cada
qual com suas possibilidades e limitações técnicas), mas também notar as
maneiras distintas de abordar artisticamente um mesmo tema e problemática. Fica
claro aquilo que todos deveriam suspeitar: nas mãos do escritor, do dramaturgo
e do cineasta, cenas, personagens, mensagens explícitas e implícitas se
modificam, profunda ou superficialmente; descobre-se como isso se deu no caso em
análise: há um Nelson Rodrigues (nos palcos) e outros Nelson Rodrigues (nas
telas). Quais as características de um e de outros? É ler e saborear.
Valdemir
Pires
Leitor
e eterno aprendiz que rabisca em "Escritos" (valdemirpires.com) sem
qualquer pretensão. Disponível para minicursos e palestras sobre leitura e
reflexões sobre o tempo. Aceita receber livros de literatura e de ensaios para
resenhas, publicando-as no seu site somente no caso de avaliação
favorável.
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